quinta-feira, 19 de março de 2009

Não te disse

Não te disse o crepúsculo que habita os dias mal escritos. Não te disse que admitir a inutilidade da morte é tão proibido como dissecar o coração para desmascarar em flagrante as cordas sanguíneas da alma. Não te disse. Sequei o inverno e recoloquei as palavras na gaveta para não magoar a leitura de ninguém. Dissequei alguns advérbios de tempo e de bons modos. Reacendi pirilampos parindo em luz à luz do pôr-do-sol. Desenrolei os filamentos dos teus nomes e as artérias à esquerda dos algarismos que sei de dor e salteado. Não disse. Soletrei pingo a pingo a chuva que bebi dos teus olhos. Destapei o rosto e mandei lixar os insectos e a fragrância das tuas palavras. Oxalá nunca tenhas que experimentar as tuas próprias ficções extremamente poéticas.

O baloiço de pedra. As lâminas que acariciaram as pulsações da voz que engoli quando tentei falar a última vez o último beijo o último poema íntimo. Não te disse. Sei apenas por ouvir dizer. As páginas de pólvora em ebulição. Os aquários que vieram desaguar na mansidão dos rios em direcção amar-te. O único planeta que não sei de cor e que não te disse. Assim como não sei os astros é na poesia que os conheço. Assim como não reaprendi os dialectos da tua boca é por metades que escrevo e me apago nas linhas tortas cúmplices das tuas incertezas que não dissequei.

Os arvoredos o vento as flores a cidade o tempo a insónia a memória e todas estas coisas de fazer poesia. Não te disse para não te magoar a leitura. Para não te picares nas entrelinhas das rosas nem na enxada com que escrevo a terra. Para não lagrimares em seco a largura e o comprimento da fome nos dias em que não conseguires iludir o estômago com o fim do mês desordenado. Todas estas coisas já não são. Tornaram-se pontos de vista para todos quantos procuram disfarçar a cegueira tendo o coração à espera da ressurreição. Onde os desejos se despem e dançam e se despedaçam e a respiração seca. Onde as surpresas são ideias ocasionais aqui onde me encontro surpreso entre quatro muros altos. Onde a cidade é um exército de solidões desandando de um lado para outro. Onde a esperança é uma relíquia que não se deixa guardar nos bolsos mas nos faz permane-Ser. Onde os murmúrios em uníssono são uma canção de embalar as pedras molhadas pelo sol. Onde não sei os pulsos o sangue os nervos a inspiração arterial não sei o fruto a flor o tronco a raiz a terra a semente não sei a vida por ouvir dizer que existe. Sei por me ouvir escrever que a vivo e preservo.

Não te disse nada para te livrar das utopias que não consigo corrigir nem a pontapé.

Sei o que ficou por dizer. E o que ficou por dizer é que só dissequei as palavras para não te encontrares algures na míope leitura. E se já não tiveres atrevimento e bravura para ler apaga-me. Risca tudo. Passa uma borracha nos olhos. Só disse metade. Para não te magoares com o estrondo ácido de versos onde me aleijo cada vez que retiro da gaveta a esferográfica e ponho em prática as minhas reticências…

sábado, 14 de março de 2009

Porque um verso são versões que os outros dirão.

sábado, 7 de março de 2009

Espectro

Brincar o sentimento é brincar corpo a corpo com o espelho. E eu deixei. Não vou mais. Tenho os olhos nítidos como o azul fresco do céu. Já tenho idade para perder o juízo! Mas. Tenho os longes a povoar a saudade. É-me forçoso sonhar ao milímetro sem esticar demasiado as emoções. E se crio insinuações sentimentais ocas por dentro é porque recuso refilar com a infidelidade recíproca das nossas palavras destinadas à demolição. Se me ponho a nu. Quase correndo o risco de me expor. Descalço dos pés aos sentimentos. Coberto com ligaduras coladas à pele. Apalavrando ondulações rítmicas ao amanhecer. É porque mesmo onde não chego vou sempre com um lápis pronto a alvejar o papel.

A escrita é um antídoto eficaz para sobreviver à demolição dos dias.

Mas. Pronto. Chega de circo!! Chega de ferir as atenções dos outros na tentativa de dizer para além dos abecedários. Aqui. Onde me repito em cada disparate novo. Em cada zaragata íntima em fogo-de-artifício. Aqui. Lugar subterrâneo onde tento alegrecer a vida. Não sei em que silêncio começa um poema a ser Poesia. Aqui. Vou sentir a sério sem brincar os bocados de mim que não seriam inteiros senão atacados pelo humor. Enquanto puder. Permanecerei fiel ao delírio. A única razão que me leva a escrever mesmo com versos anteriores ao sonho. Aqui. Chegarei com uma hora de atraso em relação aos meus relâmpagos. Não vou mais sonambular o sono. Não regressarei enquanto não descobrir em que
silêncio começa um poema a ser Poesia. Espectro!