Cansado de inventar silêncios na boca dos outros, pegou na vassoura. Varreu os pensamentos fora da validade. Esfregou as manchas de insónia, cor de sol, coladas à página onde dormira. Abriu as janelas na ânsia de se arejar por dentro. Lá fora, ruídos. Motores à velocidade de engarrafamento. Dirige-se para o quarto, a fim de verificar se ela ainda estava deitada. Fotografou, do percurso, os passos que foi largando. Ao chegar, reparou que continuava deitada… a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.
Soergue-se, tentando afastar o sono do rosto com as mãos, dizendo: “Se conseguires fotografar a minha ausência, deixa os fragmentos deste amor no cesto da roupa suja. Quero libertar-me dos anos em que escondi as palavras debaixo da língua por medo de algumas verdades – ter coragem para ler o teu fado em voz alta, sem receio de deixar cair as cordas vocais pela garganta adentro. Sim, hei-de vestir-me de novo, limpa e lavada da cabeça aos sentimentos, nem que seja à força de tanto esperar. Tal como ontem, voltei a estar ausente enquanto fazíamos do amor um palco de diversão. Porque, acredita, a distância é a maior proximidade que tenho de ti.”
Aquela revelação atingiu-o de forma abrupta. Demorou alguns segundos até recuperar o fôlego. Sem saber exactamente o que responder, num tom desengonçado mas determinado: “Vai! Pega nas tuas coisas e desaparece de uma vez por todas! Não vou regatear nem mais um beijo! Os que te dei, alguém tos há-de roubar. E quando um dia te lembrares de olhar para trás, verás que os melhores parágrafos da tua existência foram escritos por mim. De que te servirá, frente ao espelho, tentar preencher a lápis um olhar vazio? Não me apetece fotografar a tua ausência. Fazer de conta que o passado não foi mais do que rascunhos interrompidos por falta de inspiração. Sabes, amor, não me importo de repetir versões diferentes do mesmo erro desde que a última versão me traga a bússola que me conduza a um amor de verdade. Este é apenas uma tentativa. Tem calma!”
“Tem calma?! Desde quando a última versão traz mais verdade?” Descalçou o tapete por baixo dos pés. Afastou-se. Andou de um lado para o outro, parecia querer fintar o tempo com passos sem direcção. Por fim, tombou o corpo sobre a cama como se fosse uma mala carregada de cansaços. Voltou à carga:
“Muda de página, homem, muda! Às vezes sinto-me inocente apesar de todas as ilusões provarem o contrário. Distribuo a saudade por toda a casa. Nas gavetas da cómoda, nos retratos que enfeitam as paredes, nas toalhas, nos pires e nas chávenas penduradas nas prateleiras. Por todo o lado. Ouviste? Por todo o lado! Até mesmo aqui. Porque quando te chamo, dos teus braços apenas recebo um abraço eternamente devedor. Portanto, não contes comigo para encobrir os teus lapsos de imaginação. Faz o que quiseres, não me dês poesia para curar o silêncio. Há sons que nada podem em certos dias. Apetece-me qualquer coisa além de nós. Quem sabe não haverá uma eternidade do tamanho dos teus olhos. Hoje é um daqueles dias em que, aconteça o que acontecer, estou disposta a passar a noite em claro, envolta em lençóis de insónia. Podes não acreditar, mas estou inclinada a empanturrar-me de mimos, seja de quem for. Haverá outro modo de atear fôlego à tua respiração sem ser boca a boca? Vá! Responde! Se não tiveres nada a dizer, pelo menos saberei que não fomos feitos um para o outro e muito menos para os outros que partilharam connosco esta mentira. Custa muito dizer isto, mas todo o amor que te dediquei não passou de uma estratégia para me afastar daquilo que já não suportava – a solidão.”
“Sossega… às vezes, também me pedem para manter os pés na terra. É por isso que os mantenho, há anos, assentes no sonho. E, confesso-te, não gosto de ilusões… salvo quando o arrebatamento nelas contido nos ensina o caminho de volta à lucidez. Há muito que me tentei esconder da realidade, na tentativa de ser livre. Deixa-me ser feliz em qualquer lugar, apaga este esboço! Risca-o. Reescreve-o, se necessário for. Mas não te esqueças de voltar ao princípio – é insuportável imaginar que poderei acordar sem ti ao meu lado.”
O conto aproximava-se do fim. Faltavam poucas linhas. Ambos o sabiam: por mais que tentassem adiar a eternidade, nas folhas, ficarão sempre alguns restos de tempo para viver. Vírgulas fora do lugar, frases inconclusivas, parágrafos mal escritos, rasurados e emendados. Na maior parte das vezes, rasurados, amachucados e atirados ao caixote do lixo como rascunhos. Tentativas de ser feliz.
Disfarçadamente, ela saiu do conto pela porta das traseiras. Consta que entrou na realidade. Nunca mais ninguém a viu, nem eu. Ele sorriu à vida em sinal de reconciliação, largou a vassoura, fechou as janelas e nunca mais inventou silêncios na boca de ninguém. Agora inventa beijos para os que não têm tempo para dar, pois enquanto a vida nos convidar a ser felizes, nada, nem este relâmpago eternamente provisório, poderá atingir-nos com um ponto final
7 comentários:
Lindo e tão bem escrito que por momentos me senti inspirada a escrever!!! Obrigada pela partilha!
Grande!
Como sempre!
Beijinhos e saudades de por aqui pass(e)ar :)
mariam
Aprecio bastante o seu blog e os seus posts. Sempre que posso tenho visitado o mesmo e delicio-me com o que escreve. Até coloquei na barra de favoritos :)
Espero que continue com o bom trabalho.
Cumprimentos
Margarida Fonseca Dias
www.fichiers-de-france.com
...gostei do desafio!!!!
Abraço!
"Faz o que quiseres, não me dês poesia para curar o silêncio."
Que mania esta de sermos teimosos!
Obrigada pela partilha! :)
não tenho palavras... depois de o ler guardo o que sinto. e o que sinto é muito bom.
Né
NÃO!!!!
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