terça-feira, 4 de novembro de 2014

Poema em movimento "Regressos"

1 comentário:

maria maria disse...

É tarde
Não venhas buscar a tua ausência
Já passou
Mas se um dia regressares
Devolve a nossa música
Envolve-me no silêncio dos teus gritos
Amor
Se um dia regressares
Ternura-me
Abre o sono dos meus olhos
Como se os teus lábios fossem os ponteiros de um beijo
Se um dia regressares
Não venhas para buscar a tua ausência
Vem para devolver o primeiro beijo
Porque este é o último poema que te escrevo

Heduardo Kiesse, Paradoxos


Que belo, sabe? Interroguei-me pois era tão enigmático: os lábios como ponteiros - lembrando-me o tempo, e conjugando-se ainda no eco da música do quinto verso permanecendo no ouvido, ainda no rasto do pensamento. Então fui ao dicionário. E li:

"Ponteiro:
1. pequena haste ou vara para apontar
2. utensílio aguçado dos canteiros para desbastar pedra
3. utensílio de ferir as cordas dos instrumentos de música
4. (relógio) espécie de agulha para indicar as horas e as suas fracções".

Senti-me visitada pelo entendimento e a minha indagação aprofundou-se: é então este poema um canto fúnebre? Um canto, sim.

Regressar: início (iniciação?) no tempo do amor. O cantor (que é o que ama) figura-se num instrumento, num instrumento do amor. Música e palavras, som e sentido, prosódia e significado - não é isto a poesia? (Neste contexto, que é musical e poético)feridor e ferido são um só, são a música, ferir é ser músico, e ser ferido é ser o instrumento, mas os dois são compositores, um toca e o outro deixa-se tocar, neste movimento de um se internar no outro e do outro se abandonar a esse ser internado pelo outro, no movimento de ambos se fundirem, produz-se o som e a música (ou o amor, é o mesmo)surge, na mesma imagem, como ferida - composição amorosa, portanto, tangida. Ferir e ser ferido é produzir um canto de amor, uma música contando uma história de dois, ferir e ser ferido é atingir a verdade amorosa interna do outro e do próprio amor, tocar o outro com os lábios e assim ser tocado é trazer-nos luz, trazer-nos um verbo amoroso e a harmonia, um canto, - ("nos" - aos amantes)

(escrevo apenas sobre os versos da comparação. O seu poema é abre muito mais - e desculpe, minhas palavras são pobres).

Setembro de 2013 (fim de Agosto, início de Outubro, não me lembro bem) - Eu estava no Rossio, na paragem do autocarro, livro raro de edição particular, de Omar Khayyam nas minhas mãos, sob os meus olhos, mergulhava nele e de repente passou, interpolou-me, sua voz despertou-me da leitura, entregou-me num papel os paradoxos do edu. Eu sabia que era um encontro com uma hora marcada e hoje cheguei e retribuo com minhas tão pequenas palavras o que me deu. Obrigada, porque o que leio de si é tão belo - tão belo, sim. Já não o deixo.

Maria João