quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Com sequências

Deslouco-me de um lado para o outro sem sair da folha em branco. Do escrever soltam-se sílabas ambíguas lidas de baixo de água. Mas não afogo. Apenas um breve incêndio ao fundo do quarto. Tão só e mal iluminado como o sótão onde me visto de advérbios de medo e vogais com som antes do nascer da prosa.
Misturo palmas com as mãos e calço versículos em ebulição para ver se os músculos aguentam mais um quilómetro lá em baixo.
Descalço o pôr-do-sol da cintura para cima e quando não tenho no peito equadores perpendiculares ao eixo do coração estraengulo as palavras para que a diversão não se sobreponha nunca ao conteúdo.
Visto gritos que não me cabem na faringe. Experimento trocar a vaidade. Mas acabo quase sempre por vestir a roupa da noite anterior. Não tenho tempo para mudar todos os dias de mim. Às vezes visto o mesmo corpo durante o sono e o que escrevo repito para não cansar.
As horas continuam. Tão nuas como vêm em vão. A saliva coagula na boca. É pecado que se despe crepúsculo e se despede aurora.
Aproveito para revistar o quarto de uma ponta à outra. Devagar. Vasculho. Abro. Fecho. Desembrulho. Afasto a gula dos dentes. Deixo-me coagular lentamente nos abraços dos teus mimos como se fosses verdade.
Hoje quero permane-ser leve e dançar. Nem que tenha que agendar a despedida noutra data longe daqui.
Mas se porventura outra mão desarrumar o som da tua voz antes do nascer da prosa endireita o eixo do coração e dança com os meus passos. Sim amor. Dança. Devagar. Mas dança. Ou amordaça de uma vez por todas os meus tímpanos para não te ouvir ressonar os sonhos.
Com tantos poemas no armário não sei que versos hei-de vestir hoje.

37 comentários:

Otário Tevez disse...

Muito bem, Eduardo.

As palavras tanto nos podem
destruir como revitalizar.
E deverão ser usadas com precaução.

Espero que consigas encontrar
as palavras do teu sentido.

Um abraço!

Atena disse...

Olá... extraordinário jogo de palavras! Faz pensar...
Para lá delas existe, por certo muita alma.
Grande abraço, Atena

Freyja disse...

Caro Heduardo,

Com tantos afectos no peito, não sei com qual sentir hoje.

Será chuva? Será gente?
Não, é a Neve que me gela a alma.
Mas é preciso ter calma!
Arredondar as sílabas e comer-lhes a chama, como quem brota dum Dalai Lama.
Ternura violenta que desce do cérebro à ponta dos dedos, que me alonga as vértebras e me bebe os medos.

Haja coragem, ou haja demência.
Mas que a morte dos vivos bata à porta de mansinho, para não assustar a criança que, de tão pequena, ainda tem esperança.

Afinal, era a neve.


Cumprimentos,

Lara Amaral disse...

No problema de escutar quem nunca te ouve, ou na dúvida do que usar para se sentir seguro, vista-se de poesia, pois com isso vc domina tudo.

Sempre bom estar aqui.

Beijos.

APC disse...

mas não é essa ambiguidade e essa dúvida que nos vai mantendo vivos? jogas muito bem com as palavras. Abraço

Carla disse...

Agora fiquei a pensar...

bj

Mitchell disse...

E tudo o vento levou é drama para neném dormir comparada com o vosso

Qual dois é mais surdo

hiiiihihihihihihiiiii

Fê blue bird disse...

Hoje vestiu os versos do talento e da imaginação.
Fiquei gulosa das suas palavras e o meu pecado da gula só se sacia devorando-as outra vez.

Justine disse...

O remoinho da tua prosa deixa-me sem fôlego. E fascinada. As imagens são cintilantes e as tuas palavras cada vez mais luminosas, apesar de às vezes amargas...
Um abraço para te vestir de anizade:))

Pena disse...

Admirável e Sublime Amigo:
"...Descalço o pôr-do-sol da cintura para cima e quando não tenho no peito equadores perpendiculares ao eixo do coração estraengulo as palavras para que a diversão não se sobreponha nunca ao conteúdo..."


Que hei-de dizer, em face de tanta erudição majestosa, profunda e fabulosa.
Faço-lhe uma vénia às palavras por si sentidas de forma DIVINAL!
Sem mais...
Abraço amigo, perante tanta maravilha mágica da sua escrita sensível e apurada que cativa e deslumbra.

pena

É simplesmente, GIGANTESCO, o que divaga, amigo.
Bem-Haja!

Val Du disse...

Amigo, os seus versos são de um impecável vestuário.

Que saudades de ti!

Sempre tão amável.

Beijos.

Graça disse...

O teu armário, meu querido, é a própria poesia... é indiferente o que vistas. Saio deslumbrada.

Um beijo nosso, imenso de carinho.

Unknown disse...

Grande Eduardo!
Grande poema!
Abraços

Carlos Alberto

Miguel disse...

Quem me dera agasalhar assim os meus sentimentos. Como não me chegam nem as palavras nem a imaginação admiro, do lado errado da janela o desfile daqueles que como Midas transformam em ouro singelas palavras, alimentando a minha alma dessas pérolas como outros a fome. Foi um acaso feliz deixar a maré trazer-me a este porto, a esta ilha com tantos tesouros por descobrir.

Tina disse...

Gostei disso, gostei mesmo.

beijos,

Anónimo disse...

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Maquinaria de Linguagem disse...

Maravilhoso isso...que lindo. Abraço

Janaína de Souza Roberto disse...

O que dizer dessa sequência de vocábulos que de deixaram anestesiada? Faço votos de que o “amor” do seu eu-lírico dance lindamente...
Parabéns, foi ótimo ler você.

Abraços poéticos,
Janaína de Souza.

Carla disse...

vestiste estes versos que me fizeram dançar...neste adeus adiado
beijo de admiração

Sônia Brandão disse...

"Com tantos poemas no armário não sei que versos hei-de vestir hoje".

Muito interessante essa imagem. Gostei.
Lembrei-me deste meu poema: Vestimenta

Queimei os meus vestidos.
Quero vestir-me apenas de palavras.

Um abraço.

sonho disse...

Esse armario está replecto de versos maravilhosos...
Beijo d'anjo

Vícios de Corpo e Alma disse...

óla Eduardo, gostei imenso deste "versiculo 7", gosto do modo como usas as palavras; gosto da forma e essencialmente do conteúdo; gosto das metáforas e dos pleonasmos. Gosto sobretudo de algumas partes em particular("... Não tenho tempo para mudar todos os dias de mim..."; ... Deixo-me coagular lentamente nos abraços dos teus mimos como se fosses verdade...etc...), dado a intensidade que demostram. Continua escrevendio que continuarei lendo.

Marlene Maravilha disse...

Acho importante que saibamos, e ainda bem que dá para escolher o nosso paradoxo para o dia seguinte. Excelente!
Voces portugueses, nasceram com a alma voltada para a poesia e o mundo de cronicas que vos é peculiar. Eu amo voces, os portugueses de uma maneira geral.
Parabéns!
Um lindo dia!
Abraços

Sheilinha Fernandes disse...

nooosssa que vc falou da minha frese, mais seu blog inteiro é lindoo, palavras todas em uma sintonia perfeitaa... adorei, agora que conheci vou estar sempre por aqui, to siguindo vc! valeu pela visita voltee sempre, sempree s2*

Lídia Amorim disse...

Lindo! :D

Beatriz Prestes disse...

Entro em teu texto e me sinto pronta para dilacerar os argumentos que qualquer palavra possa intencionar no mais interno da alma!
Algo de maravilhoso permeia este teu espaço!
Lindo demais o teu escrever!
Bea

© Maria Manuel disse...

«Não tenho tempo para mudar todos os dias de mim.»... verdade, e às vezes bem precisava. mas tu, ainda assim, tens tempo para mudar as palavras, vestir versos de extraordinários jogos poéticos e essa é a tua POESIA!

Cris Cerqueira disse...

Deixo o restante corpo da tarde se ir com um sorriso no coração... Este dança feliz por saber que as flores do fim do dia estão vivas no vaso dentro de teus olhos... Foi aí que vi o sol contar de um poeta!

Beijos!

Sonhadoremfulltime disse...

Amigo
Porque o amor é real, tenho um desafio inédito no meu espaço.
Aceita-o. Apenas necessita de um pouco de intuição.

http://sonhoemmim.blogspot.com/

Abraço

Rúbida Rosa disse...

Maravilhoso!é um mergulho no universo da palavra e de seus incontáveis significados.
Abraço

Anónimo disse...

Eu também não sei o que vestir hoje.Vou debruar o teu nome de luz, repeti-lo para ver como me soa. O rapaz ostra que me habita veste silêncio. A rapariga que sou eu, recolhe pelas praias folhas de areia.A rapariga que sou eu não sabe o que vestir e por isso te procura como a um mestre. Amigo, as palavras de um poeta não fazem livros com sucesso. Os poetas não existem para ter sucesso. Existem para se vestirem uns aos outros com as palavras uns dos outros, existem para se beberem e do silêncio encontrarem uma outra forma de vestir a alma. Por isso estou aqui, e te procuro, e repito o teu nome para ver como me soa tão bem ler-te e imaginar secretamente tudo o que escreves.
Gostei muito da "roupa".
Um abraço,
Graça Magalhaes

- disse...

Tu começas a me surpreender na primeira palavra - "Deslouco-me" e mantém a minha surpresa até o final. Talvez seja - também - por isso que é tão interessante e agradável te ler!

Dalinha Catunda disse...

Muito criativo seu texto.Bem diferente do que se costuma ler, valeu a pena passar por aqui.
Dalinha Catunda

O Árabe disse...

Vestir-se de versos... que melhor maneira de desnudar-se ante a poesia da Vida? :) Meu abraço, boa semana!

CAMINHANTE disse...

"Vista-se com seu melhor traje."

Bjos

Unknown disse...

Na loucura que permeia a nós, loucos antipoetas, antípodas, na usurpação da língua, sem o uso do beijo, eis que após ler tuas transpirações no sentido tradicional, encontrei vasta amplitude ao contemplá-lo de baixo para cima.
Saudações brasílicas!

Idaldina Martins Dias disse...

Sinto-me um sem abrigo de carinho...
Não tenho um armário cheio de poesias...
Nesta noite fria, deixei os cartões de lado, no portal, e envolvi-me no teu poema...
Agora tenho quentes o corpo e a alma!
Obrigada
Beijos carinhosos
Idaldina