quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Lagrimático
Disseste das mãos que afinam as cordas vocais do vento. As mesmas que pintam o céu da dor do mar. cor-de-aurora. As mesmas que recuam as noites até ao primeiro dia em que apaguei o timbre mudo do teu olhar
“dancem batuques até as pedras se transformarem em música. Acabem a infância noutra idade do corpo. Sacudam as árvores e o fogo os troncos e a água os ramos e o vento. Vaginem-me descaradamente como se o amor fosse a única solidão que descarrego nos braços. Gostem-se também. Bebam a sede à beira da garganta. O ritmo. A rima. Os rios. Tombem em cima dos meus cansaços. Descalcem o caminho por baixo dos pés. Tentem espremer as nuvens até o céu cair gota a gota. Respirem-me fundo como peixes fora do aguário mas não adormeçam nas escamas da minha pele. É preciso muito mais do que chuva para regar um imbondeiro”.
Respondi: “os dias viajam-se à velocidade da luz em excessos de lentidão”.
Disseste das mãos que cosem rugas à flor da pele. As mesmas que multiplicam o pão de cada dia por um milagre à força. As mesmas que fazem lagrimografias a preto e branco à espera do arco-íris. As mesmas que curam os gritos adoecidos na tua voz
“o infinito é um prazo demasiado pouco para nos escondermos nele. Perdoar-me-ás se este poema adiar por mais tempo a brisa do lado de cá do rosto? Perdoar-me-ás se as ilusões não servirem mais de desculpa para escrever? E se perderes o direito de me perder. Perdoar-me-ás se estas mãos não conseguirem poemaciar a tua pele? Seja qual for a resposta. Confesso. A verdade pesa mais por dentro do que na mão que a escreve. Confesso-vos. Poesiam-se-me horas em que distribuo a minha própria ausência por todos os cantos deste habitáculo. Na gaveta da cómoda. Nos retratos mal tratados. Na toalha de renda bordada por nós. Nos pires. Guardanapos. Chávenas. Prateleiras. Almofadas. Em tudo. Porque mesmo quando te encontro. Dos teus braços apenas recebo o abraço que ainda me deves. Faz o que quiseres com as palavras mas não me dês mais poesia para curar o silêncio. Há sons que nada podem em certos dias”.
Respondi “perdoar-te-ei quando colocares um ponto final na eternidade”.
Disseste das mãos que tentam distrair o mundo para lhe adormecer o peso. As mesmas que pesam no rosto como safanões que não se deixam ver de tão pequenos que são
“calem-me a boca à chave e deixem a porta aberta para a inspiração não fugir. Durmam todos os meus sonos. Hoje estou disposta a passear a noite em branco como esta folha este lençol de água que me dorme em cima estas paredes esferovite estas frases poesientas este vazio intensamente cheio a que por vezes se dá o nome de poesia.
Hoje sinto-me capaz de aparafusar o nome do mar à memória para não lhe perder as sílabas. Jurar nunca mais meter pombos-correio dentro de cartas aladas. Surdar os tímpanos só para não te ouvir de voz em quando. Empanturrar-me com o soro que me dás para alimentar a alma. A bem suar o suor da tua pele obscura. Agrafar os pés às asas que usas para desvoar. Dizer-te mudamente com todas as letras que não sou feita à imagem do espelho em que me lês.
Dizer-te. Por mais tua que eu seja serei sempre minha. Por mais poema que sejas serás sempre um versículo escrito em prosa. Mas. Escuta. Deixa-me perguntar só mais uma coisa. Haverá outro modo de atear fôlego à tua respiração sem ser boca a boca?”.
Respondi “nem todos os dias que nascem com palavras nascem com poesia. Mas a vida surpreende-nos sempre. Nem que seja no fim do poema. Até lá. Tentemos aparafusar as sílabas do mar à memória sem lhe perder a distância. Mesmo que no coração não haja espaço para mais ilusões e nos pulmões não tenhamos fôlego-de-artifício para atear à inspiração dos outros”.

26 comentários:

Anónimo disse...

Estava com saudades das suas prosas poéticas.

Beijo terno,
Teatro da Vida.

Anónimo disse...

Ola amigo: Lindo texto de prosa poetica adorei
Um abraço
Santa Cruz

Anónimo disse...

“os dias viajam-se à velocidade da luz em excessos de lentidão”




O que podemos dizer mais??

não sei comentar estas tuas "frases poesientas"

Confesso! :-)

bjs
Marta

Graça disse...

Ler-te é algo que não sei bem explicar :)... és único!

Beijo nosso, querido Poeta.

Nanda Assis disse...

vc qndo escreve.... tem q ser aplaudido de pé.

bjosss...

Anabela disse...

ouve o falcão o falcoeiro?
beijo

Insana disse...

Encantadoras as suas palavras.

bjs
Insana

Anónimo disse...

Há pensamentos que são verdadeiras orações.
Em alguns momentos, seja qual for a postura
do corpo, a alma está de joelhos.

Victor Hugo

Afagos na alma.....M@ria

Carmo disse...

Olá, excelente prosa.
Tenha um bom domingo
Beijinhos

byTONHO disse...



TU do PARADOXOS
é pura prosa poesíssima!

Abraços!

http://po--etica.blogspot.com e
http://6vqcoisa.blogspot.com

Tonho

Pérola Anjos disse...

As tuas palavras de tão macias, acariciam. São de tirar o fôlego, de tirar o chão. Penetram nos poros.

Beijo doce!

o n z e p a l a v r a s disse...

Tapei a boca com as mãos muitas vezes enquanto lia o seu texto. Como se o corpo falasse: calma, agora é hora de calar, no silêncio que os grandes autores provocam.

Parabéns. Todos os textos que li são grandes, e calam fundo na alma.

O Neto do Herculano disse...

Poeticamente perfeito.

11J disse...

talvez o tempo volte, mas ele nao volta mais...

drii' disse...

Mas a vida surpreende-nos sempre.

ora nem mais, o melhor que temos a fazer e continuar a fazer valer a nossa vida, a nossa vivencia. gostei muito (:

Aмbзr Ѽ disse...

grata pela visita, estou seguindo. farei uma pausa para ler seus textos, e confesso estar muito curiosa pelo blog. voltarei mais vezes.

http://terza-rima.blogspot.com/

Otário Tevez disse...

'os dias viajam-se à velocidade da luz em excessos de lentidão', por isso a vida tão rápido sume, e tanto mais fica por fazer...

Fєrnαndєz ♠♠ disse...

Grato pela visita! Gostei muito do teu blog, da forma poetica que escreves.
To seguindo!

Fernandez
http://terza-rima.blogspot.com/

Otário Tevez disse...

passa por lá no meu
canto, caro Eduardo.
as tuas palavras
são sempre bem
vindas! Boa semana.

CARLA FABIANE... disse...

O LANCE É ASSIM...

Compreendi os seus apelos
(ainda que cheios de dedos)
para que eu ficasse
no meio passo,
falasse manso.

Mas, por instito,
talvez...
Contei até três
e desperdicei meu último
sorriso sonso.

São coisas da vida
em corda bamba,
com uma imensa balança
medindo
o medo e a coragem
de desafiar
o obscuro.

Cada um ama como pode.
Você ama com receios,
eu vivo em meio aos tiroteios.

Cada dia enfrento o terror
de temer acender a luz
para iluminar
as alternativas
quase impossíveis.




Bom fim de semana!

Unknown disse...

Afirmações que se contradizem ou se apresentam numa esfera difícil de seguir o raciocínio. Texto bem construído como os dias lentos e que rodam à velocidade da luz.

Tania regina Contreiras disse...

Poesia pura! Muito bom...
abraços,

OutrosEncantos disse...

Passei boa parte da noite por aqui, contigo, desde 2007!

Beijo!

:-)

OutrosEncantos disse...

Mereces mais que ninguém o que reclamaste! Essa foi a razão da minha busca pela madrugada, mas confesso, tenho uma dificuldade, deste tamanhão..., na escolha!...
Te sinto tão acima que jamais me atreveria sequer a fazer-te o pedido!
Assim, fiquei feliz pela "quase oferta"!...
Se tiveres uma sugestão....
... senão, terei que sortear... rss

Amei!
Beijos, agora nossos!

☆Fanny☆ disse...

Amigo, fico sem respiração, de queixo caído, quando te leio! És simplesmente fantástico, ÚNICO!

"Tentemos aparafusar as sílabas do mar à memória sem lhe perder a distância."... DIVINO, ORIGINAL... são tuas as palavras, só poderiam ser.

Eu arrisco-me a dizer que me agarro às tuas sílabas, para não perder nenhuma palavra. Cada uma é uma pedra preciosa nesse teu tesouro imenso que cintila, quando os teus murmúrios ondulam em poemas de a.mar

Beijinho*

Graça disse...

[vim roubar :))]


Um beijo de saudade, querido Eduardo.