
Não te disse o crepúsculo que habita os dias mal escritos. Não te disse que admitir a inutilidade da morte é tão proibido como dissecar o coração para desmascarar em flagrante as cordas sanguíneas da alma. Não te disse. Sequei o inverno e recoloquei as palavras na gaveta para não magoar a leitura de ninguém. Dissequei alguns advérbios de tempo e de bons modos. Reacendi pirilampos parindo em luz à luz do pôr-do-sol. Desenrolei os filamentos dos teus nomes e as artérias à esquerda dos algarismos que sei de dor e salteado. Não disse. Soletrei pingo a pingo a chuva que bebi dos teus olhos. Destapei o rosto e mandei lixar os insectos e a fragrância das tuas palavras. Oxalá nunca tenhas que experimentar as tuas próprias ficções extremamente poéticas.
O baloiço de pedra. As lâminas que acariciaram as pulsações da voz que engoli quando tentei falar a última vez o último beijo o último poema íntimo. Não te disse. Sei apenas por ouvir dizer. As páginas de pólvora em ebulição. Os aquários que vieram desaguar na mansidão dos rios em direcção amar-te. O único planeta que não sei de cor e que não te disse. Assim como não sei os astros é na poesia que os conheço. Assim como não reaprendi os dialectos da tua boca é por metades que escrevo e me apago nas linhas tortas cúmplices das tuas incertezas que não dissequei.
Os arvoredos o vento as flores a cidade o tempo a insónia a memória e todas estas coisas de fazer poesia. Não te disse para não te magoar a leitura. Para não te picares nas entrelinhas das rosas nem na enxada com que escrevo a terra. Para não lagrimares em seco a largura e o comprimento da fome nos dias em que não conseguires iludir o estômago com o fim do mês desordenado. Todas estas coisas já não são. Tornaram-se pontos de vista para todos quantos procuram disfarçar a cegueira tendo o coração à espera da ressurreição. Onde os desejos se despem e dançam e se despedaçam e a respiração seca. Onde as surpresas são ideias ocasionais aqui onde me encontro surpreso entre quatro muros altos. Onde a cidade é um exército de solidões desandando de um lado para outro. Onde a esperança é uma relíquia que não se deixa guardar nos bolsos mas nos faz permane-Ser. Onde os murmúrios em uníssono são uma canção de embalar as pedras molhadas pelo sol. Onde não sei os pulsos o sangue os nervos a inspiração arterial não sei o fruto a flor o tronco a raiz a terra a semente não sei a vida por ouvir dizer que existe. Sei por me ouvir escrever que a vivo e preservo.
Não te disse nada para te livrar das utopias que não consigo corrigir nem a pontapé.
Sei o que ficou por dizer. E o que ficou por dizer é que só dissequei as palavras para não te encontrares algures na míope leitura. E se já não tiveres atrevimento e bravura para ler apaga-me. Risca tudo. Passa uma borracha nos olhos. Só disse metade. Para não te magoares com o estrondo ácido de versos onde me aleijo cada vez que retiro da gaveta a esferográfica e ponho em prática as minhas reticências…