sábado, 3 de abril de 2010

Poemorfose
Fechou os olhos a cadeado para o sono não fugir. Espalhou o quarto por toda casa à procura de cinco milímetros de infinito para trocar por um poema que não doa e que seja lido e engolido de uma só rajada. Trocou cigarros que nos fumam de boca em boca por frases brevemente acesas na pele áspera das pedras. Trocou esta tosse nas palavras pela pressa que se contorce por não chegar. Tocou palmas e semi-colcheias com mãos de trompete para simular o sopro barulhoso do vento. Trocou o quarto a sala a cozinha a varanda o buraco da fechadura e a casa. Por mim teria deixado tudo como está. Até mesmo a sujidez do cinzeiro. Teria trocado apenas uma ou outra morada de lugar. A começar por ti. Na morada que és onde não me demoro.

Porque ainda é utopia desenhar chuva nas paredes do estômago pintadas de refresco. Ainda é distante mordiscar no teu corpo as sílabas tónicas que bóiam à tona do poema. Namorar em ti como um hóspede que vem um pouco para sempre. Dar-te de comer ilusões fora do prazo de validade para que não te iludas com beijos que faço desembocar na tua boca. Ainda é preguiça acariciar-me com toda força das tuas mãos. Pregar soluços ao susto antes mesmo das emoções terem valor de troca por número de páginas. Antes mesmo de deixares escapar o sono por um bocejo. Antes da maré desaguar onde as ondas rebentam.

Trocarei o mar por um nada dum abraço em bocadinhos de eternidade. Trocarei um corpo ex-feliz por um músculo que sinta por mim o prazer do outro. Trocarei o motor que bate cá dentro pela ilusão que estragas quando atiras versos às pedras como se fossem retalhos à espera do caixote do lixo. E serão. Enquanto não aprender a meter conversa contigo. Enquanto tiver asas a baloiçar na ponta da língua sem que saia estrofe onde palavras possam cair vivas. Enquanto esquecer for emagrecer na memória o que ela não precisa. Enquanto ortografas poemas nas garrafas nas pétalas nas pálpebras e no peito e nos lábios e na língua e em água fria. Aliás. Água quente para não arrefecer o grito em pose de poesia.

Não há pecado em bisbilhotar-te as partes íntimas e gulosas do pensamento. Mesmo correndo o risco de aleijar-me deliciosamente nos teus dentes. Os versos serão só versões que os outros dirão. Portanto. Fala-me tu.

Quanto pesa o silêncio antes dos teus gritos se transformarem em magia? Quem tem borracha para emagrecer a memória de modo a não pesar mais em ti nem em pensamento? Onde esqueceste a casa na qual habitámos os maus hábitos um do outro quando a solidão ainda não era utensílio de uso pessoal? Como pode o coração contrair tantas variações de amor por metro quadrado? Como pode o sol soltar-se se não tiveres já um fósforo à mão?

Pergunta-me tu. Poema. Vestígio de pétala manuscrita. Desejo de esfarrapar a voz contra às claves que se soltam à gargalhada e continuam de pé. Rosnar pedaços de chuva caindo em pó. Uivar baixinho estouros de batuque que tombam acelerados como bofetadas nos tambores. Rugir sussurros chilrear danças malcriadas que se esfregam embatem rolam e rebolam no corpo. Desabotoar o mar ao meio com rimas amarrotadas. Correr como uma bala de açucar até à boca da janela. Lançar-me às palavras com gula. Largar vírgulas em cima deste texto e mandar parar o caminho com semáforos de papel.

Aquietar as asas que bato aqui. Deixar o pensamento cambalear no ar como flores respirando às escondidas os últimos pingos de Primavera. Abrir os braços. Espreguiçosos. Beliscar-te o sono o sabor o cheiro a cor e a pele. Só para ver se és mesmo sonho. Abrandar. Trocar estes cinco milímetros de felicidade por nenhum poema à beira-lágrima. Porque é tão bom. Poesia. Respirar isto. Nem que seja só por um pouco. Para sempre.

40 comentários:

Anónimo disse...

Ai, escreves de uma forma que dói e encanta: melancolia e beleza, tão juntas assim.

Estou sempre por aqui te lendo =).

Abraço, poeta.

Anónimo disse...

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Érica Ferro disse...

"Quanto pesa o silêncio antes dos teus gritos se transformarem em magia?"

Pesa muito, acredite.

_Sentido!... disse...

!Poesia..., à beira-dor é sempre tão bom transformar o sonho em coisa mais viva!

... assim como sabe bem ler-te e vasculhar-te os pensamentos que não escreveste, não é pecado...

És fantástico, arrasas sempre que escreves, nem que seja duas ou três "insignificantes" palavras numa pedra, ou numa flor...

Beijos
Páscoa feliz

Eu disse...

Sentidas palavras...
A riqueza do seu espaço é algo impressionante!
Acompanharei as postagens.
Deixo para ti um abraço carinhoso

Tétis disse...

Olá ParadoXos

Obrigado, em meu nome e dos meus dois companheiros de blog, Argos e Poseidón, pela visita e pelos desejos de Boa Páscoa.

Espero que também tenhas passado um Bom Dia de Páscoa.

Gostei muito de conhecer o teu blog que classifico de muito boa qualidade. Escreves duma forma espectacular.

Ficarei seguidora e, sempre que me seja possível, virei visitar-te e ler-te.

Abraços de toda a equipa do Farol.

_Sentido!... disse...

Amei a última estrofe:

"Aquietar as asas que bato aqui. Deixar o pensamento cambalear no ar como flores respirando às escondidas os últimos pingos de Primavera. Abrir os braços. Espreguiçosos. Beliscar-te o sono o sabor o cheiro a cor e a pele. Só para ver se és mesmo sonho. Abrandar. Trocar estes cinco milímetros de felicidade por nenhum poema à beira-lágrima. Porque é tão bom. Poesia. Respirar isto. Nem que seja só por um pouco. Para sempre."

Obrigada, estava com saudade de ver-te por lá.
Beijo

Ana Isabel disse...

Que prazer passear por este caminho..


Obrigada por partilhares.



Ana Isabel

A OUTRA disse...

"Trocarei o mar por um nada dum abraço em bocadinhos de eternidade."

Paradoxos:
Que frase tão bela!
Eu que adoro o mar... senti essa frase cá dentro de mim.

O seu comentário no meu "A minha maneira de ver..." dá realmente para sentir.
Obrigada
Maria

Justine disse...

Sempre surpreendida com a enorme qualidade das tuas rendas de palavras.
Sempre feliz com o beijinho que cá chega! Outro para ti, miúdo:))))

Vento Nocturno disse...

Surpreendeste-me com o desenvolvimento do teu pensamento.

Abraço

Nadine Granad disse...

Simplesmente lindo!...
*-*
Pois... seu perfil é tão poético quanto o teu espaço... ;)
... E é bem isso... as palavras pedem para sair, cutucam o cerne até que possam ser cuspidas...

São tantas coisas p/ sentir/ler!...

Abraços!... =)

Nadine Granad disse...

Esse... muito sensivel, não deixa de ser melodia que toca[nos]!...

E não pude deixar de ler suas fresas/pensamentos/poesias... Sensacionais!...
"Porque viver a vida distraído não é um problema grave. É um problema de gravidez que resulta num aborto!" ...

Abraços =)

Anónimo disse...

é a forma como escreves, as palavras que usas as metaforas, és tu...

quantas vezes não nos apetece fechar os olhos a cadeado para não deixar o sono fugir?

belisca-me para saber que é verdade.

beijos

Carol Morais disse...

Que honra te ter em meu blog, que honra ter me lido e gostado.
Gostei muito de teu blog tb. Me segue?
Desde j'a, te sigo! Espero fazer morada em teu cantinho virtual, ja que as palavras aqui encantam tanto!

Grande abraco!

samy disse...

sinceramente se me der licença vou furtar o link do teu blog e passar pra muita gente, pois não posso simplesmente deixar passar em branco algo que me emocione, sem compartilhar com os que amo o que li aqui, já me vou e de assalto: agradeço...

sua nova seguidora Samy!!!

Ah obrigada pela cortês visita!!!

guvidu disse...

acredita que foi o escrito mais lindo que por aqui li...porque soa a carta de amor, a prece, poesia, utopia, sonho e desejo de concretização.

que sejas feliz!

bj grnd luz e paz

FlorAlpina disse...

Passei a agradecer a visita no meu humilde cantinho, e fiquei encantada!
Voltarei se me for permitido, para saborear com calma cada sílaba deste banquete (d)escrito!

Bjs dos Alpes...

Secreta disse...

Dificil comentar quando...se sente tão intensamente as palavras...

Desnuda disse...

Querido Edu,

a minha admiração é em ritmo crescente sempre que aqui venho. A sua verve literária e textos de caráter dialogantes vão sempre além do melhor da arte do bem escrever. Ao lermos cada parágrafo galopamos aceleradamente em cada frase, voando nas asas de um texto pura raça e divinamente alado. E nos fartamos de idéias num banquete requintado famintos das suas palavras quentes e bebendo seus sentimentos efervescentes na intenção de nos deixar embriagar. Ave Paradoxos!


Beijos

Amor Imperfeito disse...

ENCANTADOR!

Marta Vasil (pseud.de Rita Carrapato) disse...

Parece-me que esta prosa poética aconteceu no deslizar fluido do sono/sonho. Bendito cadeado que o sono aprisionou, mas lhe soltou esta beleza de metáforas. Tantas!De tantos sentidos!
Destaco esta enorme beleza poética:"Trocar estes cinco milímetros de felicidade por nenhum poema à beira-lágrima. Porque é tão bom. Poesia. Respirar isto. Nem que seja só por um pouco. Para sempre."
Um beijo

Fê blue bird disse...

Cada palavra, cada frase é de tal modo intensa...que fico sempre assim, uns minutos a saboreá-las, pois estou sempre sedenta dos seus textos.
Parabéns e obrigada por me dar o privilégio de o ler.
Um beijinho

vieira calado disse...

Esta noite também vou fechar as pálpebras a cadeado...

Boa tirada!

Um forte abraço

Lyra disse...

Olhem este sitio absolutamente delicioso para se desenhar, "desabafar" e descontrair :o)

Percebi que não é preciso sabermos desenhar bem para ilustrarmos ou "escrevermos" o que nos vai na alma através do desenho...E às vezes é bem mais fácil desenharmos o que nos vai na alma em..."silêncio"

E podem sempre adicionar o desenho ao vosso blog ou enviá-lo por e-mail a alguém.

www.sketchtag.com - visitem - vale mesmo a pena! Divirtam-se!


Até breve.

;O)

Lyra

© Maria Manuel disse...

"Trocarei o mar por um nada dum abraço em bocadinhos de eternidade.", enquanto for "utopia" trocar tudo o mais, até o coração que ainda não se namora.

texto de imagens fabulosas, como sempre. abraço.

Dry Neres disse...

Que saudade de me acalmar aqui onde moram as mais incríveis e inéditas representações de amor em poesia!

Desculpa minha ausência amigo!

Vida de professora... rsrs

Estou dando aula pela manhã e trabalhando no Ministério da Educação à tarde... :(

Saudade esmagadora de você, amigo! Um beijo!

Lmatta disse...

como sempre um bom texto
beijos

Nilson Barcelli disse...

O texto é desconcertante, mas excelente.
Um verdadeiro poema, do princípio ao fim, em forma de prosa.
Abraço.

Val Du disse...

Amigo, você está cada dia melhor.

Quando quiser uma imagem é só pegar, valeu!:)

Beijos.

. intemporal . disse...

.

. rendo.me .

. há tanto e para sempre .

.

. o teu verbar . sublime .

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. abraço.te .

.

. paulo .

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Devaneios Contínuos... disse...

Adorei o blog! Vou seguir! Bjs! Lynne!

Jeferson Cardoso disse...

Olá Paradoxos! Hoje é quarta-feira, uma correria. Não repare em minha visita relâmpago, mas venho lhe convidar para ler o novo capítulo de “O Diário de Bronson (O Chamado)” e deixar o seu comentário.

Retornarei com melhores modos e mais tempo. Tenha uma ótima semana. Abraço do Jefhcardoso!

Margarida Fernandes disse...

Tocante.
Sublime.
Intenso.
E tantos outros adjectivos...


Convido-o a passar pelo meu blog e ver um post sobre a apresentação do livro de um amigo meu.

Ate breve!

Otário Tevez disse...

eduardo, meu colega, quando te vir, tenho um texto que escrevi que gostaria de te mostrar, e que lesses.
Utilizei uma escrita semelhante à tua (poder-se-à dizer que me baseei nas tuas histórias), a qual não estou muito habituado a utilizar, mas penso que o produto final ficou interessante. até mais ver!

Gerana Damulakis disse...

Poema em prosa excelente.

M(im) disse...

Eu...
.
.
.
.
.
Eu tenho que dormir sobre o que li.
E aquietar isto que ficou depois de ler.
Para encontrar as palavras certas.
Por enquanto... fica o silêncio.
E uma pronunciadíssima vénia!
.
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.
.
Eu....
VOLTO.
Vou voltando.
Gosto que me deslumbrem ASSIM!
G...

Lídia Borges disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lídia Borges disse...

Um texto que absorve, que encanta...
Porque a Poesia encanta em verso ou em prosa.

Voltarei!

L.B.

Poemas e Cotidiano disse...

Nossa Edu, que MARAVILHOSO. Nao, MARAVILHOSO eh pouco. Divino. Tantas coisas a se dizer. Vou voltar, e vou copiar o que gostei.
(acabo copiando tudo).
Beijos poeta inspirado! Como adoro o que voce escreve!
Mary